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Radiografia de um homem feliz. 23 novembro, 2009

Posted by Marcelo Labes in marcelo labes, simulacro.
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“Sou um típico homem feliz. De fato, após ter vivido esses quarenta anos e da forma como foi, posso assegurar que um homem não tem muitos motivos para não dar certo na vida. Vejam meu caso: de família humilde, vi meus dois irmãos aventurarem-se pelo que de mau a vida nos oferece no dia a dia e terem se tornado homens angustiados e deprimidos pela difícil situação financeira em que se encontram. Eu previa desde cedo que fossem terminar assim, mas nunca lhes disse: queria que se dessem conta de que seres ignorantes têm vidas ignorantes.

“Da mesma forma, vi meu pai morrer afogado em litros e litros de pinga barata. Eu lamentava tanto a sua decisão quanto a minha tristeza por vê-lo, aos poucos, oferecer a nós, espectadores de sua decrepitude, as cenas mais terríveis a que poderíamos ter sido expostos. É baseado nisto que explico os deslizes de meus irmãos e a infelicidade de minha mãe. Ou a sua ascensão: depois que meu pai finalmente nos permitiu viver um pouco menos angustiados, minha mãe alternava seus relacionamentos entre homens iguais a ele e respeitosos senhores do círculo católico — e tediosos, por deus! — que vinham jantar em nossa casa sábados à noite.

“É evidente que não saí ileso dessa conturbada vida familiar. Ainda hoje, em noites de insônia, lembro do choro calado de minha mãe e dos gemidos de meu pai em seu leito de morte; ora alternados os dois sons, ora sobrepostos. No entanto, tirando meu fatal medo da vida familiar que por alguns momentos tive a oportunidade de criar — eu mesmo teria a minha família, meus filhos, minha casa, meu carro etc. — posso dizer que nada disso me afetou como afetou meus irmãos ou minha mãe ou as pessoas que paravam diante de nossa casa nos sábados à tardinha, quando o pai voltava carregado do bar.

“Mas sou um homem feliz. É bem verdade que se minha elegância se sobrepusesse ao meu temperamento frio, eu teria mais sorte com as mulheres e com os amigos. Não sou muito chegado a amigos: lembro-me dos tempos de escola, quando éramos em três ou quatro e tive de delatá-los para manter a bolsa de estudos que com muito choro minha mãe havia conseguido no colégio católico. Das surras que apanhei após a delação, tirei a lição de que não se pode ser muito achegado às pessoas.

“É daí, certamente, e do meu temperamento, não se pode esquecer dele, que veio meu tino comercial, essa capacidade de fazer negócios e, como dizem os sindicalistas em discursos acalorados, explorar pessoas humildes. Ora, eu também já fui humilde e tirei proveito de tudo quanto sofri para me tornar um homem tão bem sucedido. E feliz, como se pode ver.

“Acontece, sim, às vezes, de eu me perceber solitário, gastando pequenas fortunas em ternos italianos ou nova-iorquinos — que são parte fundamental da minha presença austera e marcante. Mas aprendi com o tempo: para pequenos remorsos há sempre pequenos remédios e isso fica explícito nas doações que faço, duas vezes por ano, de jogos de agasalhos que peço, discretamente, que sejam entregues em instituições de crianças desfavorecidas.

“Tenho meus deslizes. De repente, se eu comentá-los, a imagem que se tinha de mim antes de eu começar a falar de minha vida se deturpe. Tenho uma proximidade sensual com o álcool e com remédios para dormir, hábitos que herdei de minha mãe e meu pai, talvez seu maior legado ao filho mais novo de uma família neurótica. Mas nada disso me diminui, embora tenha ficado constrangido de, ao observar à distância a entrega dos agasalhos, ter visto ali meu irmão mais velho e sua esposa com seus dois filhos. Eles tristemente esperavam na fila a sua vez. Mas isso não pode me diminuir.

“Como eu bem dizia, sou um homem tipicamente feliz. Ou aparentemente, porque feliz de fato sabe-se que não se pode ser”.

E ao pensar estas últimas palavras põe-se absorto entre pensamentos e imagens que somente uísque escocês a mil e duzentos euros a garrafa pode proporcionar.

Comentários»

1. Rafael Waltrick - 25 novembro, 2009

Belo texto. Achei ele um tanto quanto pé no chão – talvez tenha sido eu que viajei demais no meu – e por isso mesmo talvez tenha me sentido incomodado com ele. Incomodado no bom sentido, é claro. Um personagem forte, pra mim, é responsável por grande parte da eficácia de um conto. Foi o que observei no seu último texto e observo agora: narradores que parecem se misturar à nossa própria voz, com uma visão crua e realista do mundo que os cerca. É quase como levar um tapa na cara e sentir um remorso ao notar que aquele personagem parece traduzir sensações e pensamentos que às vezes fazemos questões de esconder. Talvez seja eu que sou amargo demais, ou seus textos e impressões que me fazem sentir assim. De qualquer maneira, se o conto acabou suscitando uma sensação assim, é porque o escritor foi, antes de tudo, bem-sucedido em sua missão.

2. Fabrício Cardoso - 25 novembro, 2009

Textos profundos merecem uma abordagem crua da vida. Não se faz boa literatura com comiseração. Cumprimentos, Marcelo.
Waltrick, vou ler o teu depois. Está muito grande para uma leitura remunerada pelo patrão (risos)

3. Rodrigo Oliveira - 25 novembro, 2009

Belo texto, de fato. Não saquei mto qual foi a da última camada do texto, de pôr um texto dentro do outro (jogar mais um narrador posterior ao primeiro). Não que tenha piorado o texto, mas fiquei aqui pensando (eu que faço isso à vezes) no porquê, no como isso afeta a narrativa. Não peguei aqui a importância dele pra história. Seria a garrafa? Não sei se seria motivo o suficiente… Curti o texto, mas acho que essa discussãozinha me chamou a atenção e aproveitar pra destacar ela pra ver o que a gente consegue construir a partir disso.

Marcelo Labes - 25 novembro, 2009

a gente vai discutir isso por comentários, rodrigo? podia haver um espaço menos confuso, não?

4. Rafael Waltrick - 26 novembro, 2009

Fabricio Cardoso passando por aqui? Honrosa aquisição para o nosso hall de leitores!!

5. Rodrigo Oliveira - 29 novembro, 2009

de fato, Labes. é preciso, de fato. temos que marcar. pra já nao rola, quem sabe um encontro segunda quinzena de dezembro (com as coisas mais calmas)? Estendendo aos demais duelistas e leitores interessados.

6. Fábio Ricardo - 30 novembro, 2009

Gostei bastante. Mais uma vez o Labes está se mostrando um escritor cru. Muito me alegra.


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